Mudanças entre as edições de "Cobertura para fracassos passados"
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Se o artista considera sua produção passada um equívoco, podemos afirmar que sua tentativa de cobri-las guarda, pelo menos parcialmente, uma forma de negação disso. Por mais que sugiram uma negação visual, ainda permitem entrever, no relevo das linhas, os desenhos apagados (mantendo inclusive parte da informação visual). E é o próprio Daré, ao descrever cada uma das imagens apagadas com palavras escritas sobre as listras, quem lhes dá ainda menos cobertura. Se a visualidade resiste latente na matéria, é em código escrito que, evocadas, as imagens permanecem. | Se o artista considera sua produção passada um equívoco, podemos afirmar que sua tentativa de cobri-las guarda, pelo menos parcialmente, uma forma de negação disso. Por mais que sugiram uma negação visual, ainda permitem entrever, no relevo das linhas, os desenhos apagados (mantendo inclusive parte da informação visual). E é o próprio Daré, ao descrever cada uma das imagens apagadas com palavras escritas sobre as listras, quem lhes dá ainda menos cobertura. Se a visualidade resiste latente na matéria, é em código escrito que, evocadas, as imagens permanecem. | ||
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Mais ainda, Daré repete no presente um gesto iconoclasta do passado para repará-lo — isto é, reparar tanto o passado, consertá-lo, cobri-lo; quanto reparar o gesto, notá-lo, colocá-lo em evidência. O gesto em questão é a “marca registrada”, por assim dizer, do artista francês Daniel Buren, que desde fins da década de 60 não produz nada além de faixas coloridas alternadas, não por acaso muito parecidas às de Daré[1]. E é a partir desse nó temporal que o passado volta e se mostra não só como fracasso, mas também reparado como potência para o presente. | Mais ainda, Daré repete no presente um gesto iconoclasta do passado para repará-lo — isto é, reparar tanto o passado, consertá-lo, cobri-lo; quanto reparar o gesto, notá-lo, colocá-lo em evidência. O gesto em questão é a “marca registrada”, por assim dizer, do artista francês Daniel Buren, que desde fins da década de 60 não produz nada além de faixas coloridas alternadas, não por acaso muito parecidas às de Daré[1]. E é a partir desse nó temporal que o passado volta e se mostra não só como fracasso, mas também reparado como potência para o presente. | ||
Edição atual tal como às 12h41min de 2 de julho de 2017
Coberturas para fracassos passados
Daré
Não é à toa que Daré considera a série Cobertura para fracassos passados um ponto de inflexão em sua produção. Para realizar esta série o artista recobriu com listras alternadas de cor algumas das primeiras telas que havia pintado. Trata-se, como o título tão claramente denomina, de uma tentativa de apagar a produção anterior do próprio artista. Tentativa pois só vem a afirmar seu (suposto) fracasso, reproduzi-lo, multiplicar seus efeitos. Suposto pois a tentativa ganha sua potência exatamente no seu fracasso, a cobertura revela, ou seja, é uma tentativa cujo sucesso é sua própria falha: que é a única coisa que mantém a condição de tentativa, e não a esconde sob o véu do perfeito, do acabado.
Se o artista considera sua produção passada um equívoco, podemos afirmar que sua tentativa de cobri-las guarda, pelo menos parcialmente, uma forma de negação disso. Por mais que sugiram uma negação visual, ainda permitem entrever, no relevo das linhas, os desenhos apagados (mantendo inclusive parte da informação visual). E é o próprio Daré, ao descrever cada uma das imagens apagadas com palavras escritas sobre as listras, quem lhes dá ainda menos cobertura. Se a visualidade resiste latente na matéria, é em código escrito que, evocadas, as imagens permanecem.
Mais ainda, Daré repete no presente um gesto iconoclasta do passado para repará-lo — isto é, reparar tanto o passado, consertá-lo, cobri-lo; quanto reparar o gesto, notá-lo, colocá-lo em evidência. O gesto em questão é a “marca registrada”, por assim dizer, do artista francês Daniel Buren, que desde fins da década de 60 não produz nada além de faixas coloridas alternadas, não por acaso muito parecidas às de Daré[1]. E é a partir desse nó temporal que o passado volta e se mostra não só como fracasso, mas também reparado como potência para o presente.
Daré poderia muito bem ter queimado suas telas, picotado cada uma, jogado-as fora, entre tantas outras alternativas realmente destrutivas. Destes modos, sem dúvida, cobriria por completo a sua produção passada. Apagaria, enterraria, faria com que sumisse sem deixar rastro. Mas, muito mais do que isso, engajou-se num valioso embate com ela. E assim é capaz não só de mostrar como a materialidade do passado ronda continuamente o presente, à sua revelia, mas também como operam as tentativas constantes de reparar a história, quaisquer que sejam as intenções dessas tentativas.
[1]Daré não hesita em admitir que o objetivo sempre foi evocar a obra de Buren.